Rosana Beraldi Bevervanço*
Em tempos de pandemia, é natural que tenhamos cuidado redobrado, especialmente em relação aos idosos, que estão em situação mais vulnerável frente às consequências da doença Covid-19, como amplamente sabido.
Entretanto, não podemos, para protegê-los, adotar posicionamentos que neguem direitos de cidadania. Exemplificativamente, pode ocorrer uma infantilização indevida, que chega a ser considerada cientificamente como violência psicológica.
A insistência de alguns idosos em irem às ruas, mesmo com recomendação de isolamento social, pode ser atribuída a vários fatores: não têm com quem contar para ir às compras, ao médico ou à farmácia ou, ainda, não gostam do que consideram incomodar os familiares. Outros querem reafirmar sua independência ou não acreditam na doença, pois passaram incólumes por tantos vírus ou bactérias no decorrer da vida. Também pode haver negação da própria idade, posturas ideológicas ou culturais, etc.
O que se impõe, no momento, é a necessidade de reafirmar o direito à igualdade, conforme dispõe o artigo 2º do Estatuto do Idoso. No mesmo sentido, o direito à liberdade é assegurado no Estatuto, em seu artigo 10, §1º. Neste ponto, importante observar que o direito à liberdade foi tão prestigiado pelo legislador, que assegurou ao idoso capaz a escolha de tratamento de saúde, conforme o artigo 17 do Estatuto do Idoso.
Então, asseguradas a isonomia e a liberdade, o contexto atual exige lembrarmos que a capacidade civil do idoso o acompanhará a vida toda, enquanto puder manifestar sua vontade.
Ademais, a curatela tornou-se medida excepcional e temporária, afetando somente atos de natureza patrimonial e negocial, conforme artigos 84 e 85 da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. As fragilidades naturais do processo de envelhecimento e até mesmo a presença de doenças que eventualmente podem, no futuro, levar ao impedimento de manifestação de vontade, não autorizam lançar mão da curatela e, muito menos, relativizar a capacidade civil do idoso faticamente, a despeito de decisão judicial fundamentada para tanto.
Evidentemente, é necessário analisar se temos, no caso concreto, um idoso portador de Covid-19 e que insiste em abandonar o isolamento, pois, dessa forma, estaria colocando a saúde pública em risco e, então, deverá responder legalmente – civil e criminalmente – por isso, sendo possíveis até mesmo as medidas de urgência que temos visto para pessoas não idosas.
Cabem, por igual, as medidas protetivas do Estatuto do Idoso que, conforme art. 43, são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados, presentemente, no atual cenário, especialmente diante da condição pessoal de idoso (inciso III). No art. 45, o legislador elenca algumas medidas protetivas, que não são taxativas e podem ser cumuladas (art. 44).
Art. 45. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 43, o Ministério Público ou o Poder Judiciário, a requerimento daquele, poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas:
I – encaminhamento à família ou curador, mediante termo de responsabilidade;
II – orientação, apoio e acompanhamento temporários;
III – requisição para tratamento de sua saúde, em regime ambulatorial, hospitalar ou domiciliar;
IV – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a usuários dependentes de drogas lícitas ou ilícitas, ao próprio idoso ou à pessoa de sua convivência que lhe cause perturbação;
V – abrigo em entidade;
VI – abrigo temporário.
As medidas protetivas necessitarão ser analisadas caso a caso, dependendo do estado de saúde físico e mental do idoso, sendo indispensável indicação médica detalhada. Importante também lembrar que medidas restritivas da liberdade (incisos V e VI) carecem de ordem judicial.
Agora, se temos um idoso plenamente capaz, não há como vedar a ele que, por exemplo, faça por si mesmo suas compras. O poder público pode, obviamente, recomendar isolamento ou aplicar multa administrativa, acaso prevista para o descumpridor, mas vedar seu direito de ir e vir é ilegal.
As famílias que se preocupam com a insistência dos idosos não infectados em saírem podem buscar auxílio do Conselho Municipal do Idoso, das Secretarias Municipais de Assistência Social e de Saúde, como forma de convencimento; ou até mesmo de psicólogos, se for viável, via serviço público e/ou particular (até mesmo on-line).
Assim é que, mesmo em contexto de pandemia, não se justifica o desrespeito às garantias e direitos dos idosos. Ao mesmo tempo em que a autonomia da vontade e a plena capacidade civil do idoso devem ser observadas, há que se resguardar o interesse coletivo à saúde pública, analisando-se as situações de forma individual e aprofundada.
*Procuradora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa dos Direitos do Idoso da Pessoa com Deficiência