De seu gabinete em um prédio histórico no Centro de Curitiba, cercada de obras de arte, como não podia deixar de ser, Luciana Casagrande Pereira enxerga o Paraná inteiro. Com extensa experiência no setor cultural, a arquiteta e ex-presidente da Bienal de Curitiba assumiu em 2019 a recém-criada Superintendência Estadual de Cultura com a missão de tornar mais equalitário o acesso às diferentes formas de arte em todo o Estado. A proposta era que projetos e recursos não ficassem apenas centralizados em Curitiba, mas chegassem a cada um dos 399 municípios paranaenses.
Ao contrário do que se poderia imaginar, mais do que adiar esses planos, a pandemia de covid-19 acabou acelerando o processo de acessar novos públicos. Grande parte da produção migrou para o digital e ficou disponível ao toque das mãos, com lives e outros projetos artísticos inundando as redes sociais e as plataformas virtuais.
A pasta não ficou para trás e viu a oportunidade de tornar ainda mais aberta a relação com o público, independente do lugar onde ele tivesse. “A cultura não parou, os artistas não pararam de produzir, e nem nós. Fechados para o público presencial, nossos espaços começaram a fazer um novo trabalho, migrando para o virtual, com uma aproximação muito intensa do público”, destaca a superintendente.
Pensando em quem consome cultura e também na necessidade de sobrevivência da classe artística, a superintendência logo criou alternativas, com a abertura de editais emergenciais que já pensavam no licenciamento de materiais para exibição online. Foi daí que surgiu a Paraná Cultura, plataforma multimídia lançada recentemente pelo governador Carlos Massa Ratinho Junior, uma “vitrine da produção artística paranaense durante a pandemia”, como bem lembra Luciana, que conta com mais de mil vídeos de diferentes vertentes artísticas.
Nesta entrevista, Luciana Casagrande detalha esse processo e também outras formas de subsídio a uma classe que tanto foi afetada pela pandemia. Entre elas está a Lei Aldir Blanc, que em homenagem a um dos maiores artistas brasileiros, também vítima da Covid, passou a dar suporte a outros milhares de trabalhadores culturais.
No Paraná, a lei ganha um novo desdobramento, com a criação da Bolsa Qualificação, que une o auxílio econômico ao conhecimento, oferecendo 12 mil bolsas remuneradas para profissionais que participarem de um curso de extensão em políticas públicas culturais. É também uma visão para um mundo pós-pandemia, de retomada de eventos culturais, novas possibilidades de editais de incentivo e um Paraná inteiro como palco.
O setor cultural foi um dos mais atingidos com as restrições e precisou se reinventar durante a pandemia. Como foi esse processo no funcionamento dos equipamentos culturais do Estado?
Houve primeiro um choque com a possibilidade de parar, mas a cultura não parou, os artistas não pararam de produzir, e nem nós. Fechados para o presencial, nossos espaços começaram a fazer um novo trabalho, migrando para o virtual, mas ainda com uma aproximação muito intensa com o público. O Museu Oscar Niemeyer ofereceu as oficinas do MON em Casa; o Museu Paranaense teve uma produção riquíssima nesse período, com uma participação online enorme; a mesma coisa com o Teatro Guaíra. Na Orquestra Sinfônica, um maestro que estava na Alemanha regeu os músicos em suas casas; e os bailarinos do Guaíra fizeram diversos espetáculos, inclusive especial de dança sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs). Durante a pandemia, o Museu da Imagem e do Som (MIS) completou 50 anos, e foi revisitar o seu acervo. O Centro Juvenil de Artes Plásticas e o Museu Alfredo Andersen passaram a oferecer aulas online; enquanto a Biblioteca Pública criou uma programação para o público infantil. Com todas essas atividades, ganhamos a fidelidade de um público diferente daquele que estava acostumado a ir ao museu, e ampliamos o leque também de programação. Isso não vai parar após a pandemia, vamos aperfeiçoar esse modelo híbrido com públicos diversos. Estamos conversando com um número muito amplo de pessoas, não existe mais fronteiras.
Do outro lado, existem os artistas e tantos trabalhadores que têm a cultura como seu ganha-pão. Como foi o suporte da Superintendência a esses profissionais?
Logo que iniciou a pandemia, lançamos um pacote de medidas emergenciais. Fizemos o licenciamento de filmes curtas-metragens para o pessoal do audiovisual, que estava impedido de se reunir para fazer produções, e também licenciamos os produtos que já estavam prontos. Lançamos um edital de Cultura Feita em Casa, para que os artistas produzissem sem sair de casa, sem causar aglomeração, além de editais de literatura e de outros segmentos. Em seguida veio a Lei Aldir Blanc, pela qual lançamos mais sete editais. Esses produtos, que pagamos para as pessoas criarem, estão hoje dentro da plataforma de streaming Paraná Cultura, para acesso gratuito de toda a população. São curtas-metragens, peças de teatro, podcasts, oficinas, documentários, livros digitais e os espetáculos do Balé do Guaíra e da Orquestra Sinfônica do Paraná.
Além do que foi selecionado pelos editais lançados durante a pandemia, o que a plataforma oferece para o público e qual é o seu futuro?
A Paraná Cultura é uma vitrine do que os artistas paranaenses criaram durante a pandemia. Não tem só isso, mas tudo o que foi produzido no momento de isolamento e foi selecionado pelos editais do Estado está na plataforma. É um registro histórico de como a arte se manifestou nesse momento tão difícil para todos. Ela acabou de nascer, mas tem toda a vida pela frente. A partir de agora, em todos os editais que serão elaborados, será vinculado o licenciamento para exibição na plataforma, além de ser possível também incluir os produtos apoiados pelos municípios, para não deixá-los mais restritos à exibição local. A plataforma dá visibilidade ao que se produz no Paraná como um todo e permite um intercâmbio entre as regiões do conhecimento sobre nossa cultura, que é muito plural.
No mesmo dia que foi lançada a Paraná Cultura, o Estado também deu início à Bolsa Qualificação, uma nova fase da Lei Aldir Blanc. Como essa iniciativa foi implantada no Estado desde a aprovação pelo Congresso, no ano passado?
A Lei Aldir Blanc veio para atender três faixas. A primeira tem um caráter social, que é o pagamento de uma renda emergencial mensal, de R$ 600, em que o artista recebe sem necessidade de uma contrapartida. Foi paga no ano passado e será retomada neste ano, estamos aguardando apenas a regulamentação federal. Há também um subsídio para espaços culturais, que é administrado pelos municípios, e o recurso de fomento, em que é disponibilizado o dinheiro, mas se espera uma contrapartida. Foi daí que nasceu a Bolsa Qualificação, em que a contrapartida do trabalhador é a participação nos cursos de qualificação. A iniciativa tem sido bem recebida no Estado como um todo, porque dará acesso principalmente aos artistas do Interior, aos mecanismos de fomento e incentivo à cultura. Os trabalhadores da área terão a oportunidade de aprender a como se inscrever nesses editais, além de ter acesso a outras áreas de conhecimento. Um músico, por exemplo, poderá aprender técnicas audiovisuais que podem ajudá-lo a transformar sua arte em um produto digital. A Bolsa Qualificação vem para isso também, para criar novas possibilidades de conhecimento, principalmente nesse momento de transversalidade das linguagens. Aprender novas coisas só enriquece.
Como funcionará a implantação do programa e como será feita a distribuição dessas 12 mil bolsas entre os municípios?
Cada cidade terá um número de vagas proporcional à sua população. Com isso, garantimos que os 399 municípios terão vagas no curso de qualificação. O início das inscrições ainda depende de uma regulamentação federal. O Estado contratou, com recursos próprios, a Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) para estruturar os módulos e ministrar aulas. A universidade vai contratar os professores e os facilitadores, que darão suporte naqueles locais de difícil acesso. Toda a estruturação já está sendo feita para que, quando a lei for implementada, a universidade esteja pronta para lançar o edital e iniciar as aulas. Esse programa vai atingir 12 mil trabalhadores e trabalhadoras, e traz uma oportunidade para muitos artistas e fazedores de cultura que nunca acessavam recursos públicos por não saber como elaborar um edital. Haverá uma transformação no acesso aos recursos públicos a partir daí.
As aulas serão acessíveis para qualquer público, inclusive aqueles trabalhadores que não têm acesso à internet?
Para elaborar esse programa, sentamos com a classe artística e com as comunidades tradicionais para entender a realidade de cada um, e fizemos um processo de construção coletiva para que ele fosse o mais inclusivo possível, para que ninguém deixasse de acessar a bolsa por dificuldade. Daí nasceu o papel dos facilitadores, que poderão ir até uma comunidade indígena, por exemplo, para dar apoio e levar os materiais impressos para quem não tem internet. Também foi acertado que as aulas a distância ficariam disponíveis para serem feitas no tempo de cada um. Dessa forma, definimos o valor das bolsas e a carga horária das aulas, levando em conta o maior valor possível a ser pago e um tempo de curso que fosse compatível com a realidade dos trabalhadores, a partir da referência do que é praticado no País. Fechamos, então, um curso com três módulos de 40 horas. A cada módulo completo o bolsista recebe R$ 1 mil, totalizando R$ 3 mil por pessoa. E cada um pode fazer no seu tempo: pode estudar oito horas por dia e completar o módulo em uma semana, ou uma ou duas horas por dia e fechar em um mês. Fizemos dessa forma para que o curso fosse bem abrangente e pudesse ser adaptado à realidade de cada profissional. Ninguém vai ficar de fora por falta de oportunidade, o curso está bem inclusivo.
Cursos de qualificação já estavam sendo organizados pela Superintendência, a partir de sugestões de audiências públicas feitas em todo o Estado. Além disso, como é pensada, junto com os municípios, a construção de uma política pública integrada para o setor?
Em 2019, fizemos audiências públicas em todas as macrorregiões do Estado, reunindo artistas e gestores para fazer um diagnóstico do setor. Não se faz política pública sem conhecer a realidade, e nada melhor do que percorrer o Estado para conhecer a sua pluralidade. Cada região tem a sua particularidade e fazer essa escuta foi muito importante. Nessas audiências, sentimos muito essa necessidade de qualificação, os municípios pediam muito. Grande parte das cidades paranaenses é pequena, e o gestor acumula Cultura, Turismo e Esporte em uma mesma pasta, sem ter, muitas vezes, um perfil ligado à cultura. Dentro desse processo de aproximação, também criamos os Ciclos de Diálogo com os municípios, em que nos reunimos semanalmente com os gestores. Foi uma orientação que recebi do governador Ratinho Junior logo que assumi, de olhar para o Estado todo. Hoje cada gestor tem um ponto focal aqui na Superintendência, com quem troca ideia constantemente.
Como esse processo, que envolve tanto os artistas como os gestores, vai ajudar o setor na retomada pós-pandemia?
A Lei Aldir Blanc foi um divisor de águas com relação à capilaridade do recurso, que não ficou concentrado apenas no governo federal. Houve um fortalecimento nos sistemas nacional, estaduais e municipais de cultura, permitindo a transferência fundo a fundo de recursos públicos. Essa é a tendência para o futuro, mas atualmente apenas 33 municípios do Paraná têm esse sistema consolidado, menos de 10% do total. Então estamos fazendo um trabalho no Ciclo de Diálogos para que eles se estruturem para receber esses recursos. Esse trabalho, aliado à qualificação dos artistas para a participação nos editais, que é a forma de distribuição desses investimentos, vamos fechar essa cadeia. Enxergamos a retomada de uma forma muito diferente e muito positiva, com municípios e profissionais preparados para aproveitá-la.
Dentro desse processo de interiorização, quais são as possibilidades para ampliar o acesso aos espaços culturais do Paraná, que ainda estão muito concentrados em Curitiba?
Os equipamentos físicos são todos concentrados na Capital, e nesse processo de olhar para o Estado todo passamos a pensar não apenas no espaço físico, mas também debatemos como fazer para incluir, a partir daqui, o Estado inteiro. Disso saiu a ideia de exposições itinerantes e um circuito de apresentações em todo o Paraná, que devem retomar após a pandemia. Quando percorriam o Estado, a Orquestra Sinfônica e o Balé Teatro Guaíra também levavam oficinas aos municípios, com trocas artísticas e um legado que ficava nesses locais. Esse processo deve se expandir, com um projeto de levar o Museu Paranaense a outras cidades também.
E quais são os planos futuros da Superintendência de Cultura para o Paraná?
Vamos lançar programas novos, como um de apoio a festivais e outro de film commission, para incentivar o setor audiovisual, que é muito forte aqui. Aliado a isso estarão os novos espaços culturais nos municípios, além de editais que já estão abertos, outros que estão sendo construídos e a previsão de uma nova edição do Programa Estadual de Fomento e Incentivo à Cultura (Profice), que deve ser lançado ainda neste ano. Tem bastante coisa nova vindo por aí. (AEN)
Que baita demagogia…
Enquanto isso não liberaram praticamente nada da Lei Aldir Blanc para socorrer a classe artística.