terça-feira, novembro 5, 2024
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Almir Feijó Jr: o cinema como obsessão de vida

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Aroldo Murá conta que Neste domingo, 6, morreu em Almirante Tamandaré, o jornalista e publicitário Almir Feijó Junior, a grande referência da crítica de cinema de Curitiba no século 20.  Ele morava no Nosso Lar, Casa de Idosos, plenamente assistido pelo filho, Rodolpho Feijó, fruto de união de Almir e  Marlene Zanini, ex-vereadora em Curitiba. Numa cerimônia
reservada à família, houve cremação do  seu  corpo, no Crematório
Vaticano. Oportunamente, ampliaremos nosso olhar sobre o amigo desaparecido.

Voa, meu pai. Voa que o céu é teu.
Estivemos juntos até o fim. Agora chegou a hora de você descansar. Mais
um que este vírus maldito levou.
Desfaça estas mãos cruzadas, meu pai. Jogue fora este terno preto. Abra os braços e voe bem alto. Agora você é poesia. Um filme do John Wayne, uma sinfonia de Mahler, um haikai do Leminski, um quadro da Helena Wong,um solo do Charlie Parker, um canto da Billie Holiday. Tudo aquilo que você mais gostava. Eles estão todos lá estão te esperando.

Um dia a gente se reencontra, pai. Aí juntos, eu e você, nas crinas do
seu unicórnio, viajando entre as galáxias, cruzando oceanos de luz,
iremos visitar aquele lugar onde nascem as estrelas e que só você sabe
me mostrar.

Amor, amor, amor.

Rodolpho

R.I.P.  + Almir Feijó Júnior (1950-2021)

Almir Feijó cruzou no meu caminho pela primeira vez nos finais dos 1960, quando, um rapazola, foi trabalhar no radiojornalismo da Rádio Colombo (então já de Erwin Bonkoski), e também como foca no Diário do Paraná, jornal que, habitualmente, abria portas para novos talentos. Ficamos amigos, eu acabei sendo padrinho do casamento dele com Anete Boule, psicóloga e excepcional ser humano. Triste: o casamento não durou muito, e desse período fiquei com algumas boas lembranças, como conhecer a família de Anette, particularmente seu pai, Israel, um sábio.

ENTREAJUDA

Almir e eu ficamos amigos, nos entreajudávamos. A tal ponto que em momentos difíceis como aqueles em que vivi com caixa baixa, nos anos 90, fui obrigado a me desfazer de parte de uma boa pinacoteca paranista. Almir comprou parte de meus os quadros, sem discutir, incluindo um Viaro, um De Bona, um Nísio. Pagou um valor expressivo para a época; era o valor real das preciosidades em artes.

Algumas das telas e desenhos voltariam a mim, poucos anos depois, quando a roda da fortuna mudou de endereço: eu acabei comprando alguns dos meus ex-quadros para desafogar o amigo Feijó. Rodolpho, o filho de Almir com Marlene Zanini, uma mulher singular, com biografia e história como vereadora de Curitiba, foi um dos bons presentes que o casal me deixou. Pouco nos vemos, Rodolpho e eu, mas os traços do pai e da mãe nos unem.

Sempre houve alma de artista dividindo o Almir Feijó, misto de publicitário e jornalista, atividades em que se saiu bem. Viveu momentos de fausto na publicidade, mas, como o descreveu José Maria Correa, Almir não era de entesourar. O dinheiro foi transformando-se em viagens pelo mundo, para rever Rodolpho, que estudava na Inglaterra e Holanda; outras para reencontrar o irmão, psiquiatra estabelecido em Itália. Sem contar as de puro lazer com imersões em universos culturais em que o cinema era parte essencial.

A TELA GRANDE

Nestes momentos de despedidas, não me desfaço das marcas mais fortes que o velho amigo me imprimiu. A maior delas, a do apaixonado por cinema, a do conhecedor do cinema de A a Z, que jamais se furtava a discorrer sobre as fitas que, pré-Internet, ele vira todas na tela grande. E que estão, parte delas, no seu livro Descríticas.

Nos livros sobre a chamada sétima arte, se percebe não só o trato documental com que ele sempre contemplou o cinema. Impossível não identificar nele o catequista, o missionário que não se cansava de corrigir, observar verdades e mentiras sobre a chamada a arte do cinema. Isso sem jamais esquecer de desenvolver apurada análise de intenções, recados, mensagens e todo o conteudístico de uma fita.

Tudo isso vivendo no abundante espaço de sua memória prodigiosa e capacidade de computação raríssima. Por isso, deambulava com a maior naturalidade sobre rico legado de filmes que o século 20 foi pródigo em produzir. Tinha audiências exigentes, mas elas só ampliava sua gana sobre o cinema.

“MAKING OFF”

Dizer que conhecia tudo dos filmes era pouco. Almir conhecia até o “making-off” das fitas, em algumas apontando falhas que a nós passariam a descoberto. Mentiria se fixasse os interesses de Almir apenas no mundo do cinema. Hoje o revejo, por exemplo, a me pedir “luzes”, tal quando relatava supostas manifestações do sagrado, do extraordinário não explicável, momentos marcados pelo sobrenatural.

ara consumo externo se dizia, ora ateu, ora agnóstico. Como Jamil Snege, ele também por muitas vezes expôs a mim uma enorme leque de indagações, algumas das quais iam além de minha capacidade até de fazer exegese de textos bíblicos, ou mesmo responder sobre Mircea Eliade na medida em que ele requisitava.

Como Jamil – de quem foi amigo muito próximo, em meio a desavenças, desamores, falatórios, e “conversas de Matilde” -, ele percebia rastros do sobrenatural no dia a dia. Alguns desse rastros, chegou a confessar-me, atribuía a boa fortuna de certos momentos porque, afinal, teria cumprido certos rituais e “ordenamentos”. Até por isso, gostava de conversar sobre as manifestações religiosas do homem primitivo da Austrália, um capítulo da Antropologia sobre a qual poderia falar com desenvoltura.

UM AUTODIDATA

Lamento não ter me aprofundado mais na formação escolar de Almir, que em tudo sempre me passou a ideia de ter sido um autodidata. Não fez universidade, mas poucas vezes encontrei alguém com um português tão correto e com a capacidade de comunicar sob o mais claro ordenamento das modernas técnicas de texto. Nesse ponto, chegava a abordar comigo o momento histórico em que os jornais brasileiros foram se desgrudando dos “narizes de cera” e partindo para uma técnica jornalística em que o substantivo deve reinar quase absoluto, sem espaços “para fricotes” – como ele classificava certas colunas de jornal.

Sabia, nesse ponto, alfinetar poucos desafetos. No caso, ‘fricotes’ tinham o endereço do um colunista social com quem atuara em campanha de Requião, administrando o caso Ferreirinha… Dominava o inglês britânico e o americano, além do italiano e espanhol. E com eles repetia variadas cenas, sem faltar uma letra, dos filmes antológicos que faziam seu relicário fílmico. Era impressionante…

Um dia, ousei rememorar momentos de meu diretor predileto, o Alfred Hitchcock. Fiz uma rápida referência ao “Um Corpo que cai”, uma antológica peça do mestre do suspense. Mas, por ser amador, cometi algum impropério que feriu os ouvidos de Almir. E ele não se fez de rogado, fez comigo aquilo faria com qualquer um: dedicou minutos à correção (fraterna, claro), mas sem concessões nessa sua ação catequética. Sua pedagogia era conhecida, seu compromisso com o celulóide, inarredável.

NO DICIONÁRIO

Francisco Alves do Santos, jornalista, escritor, é autor do único dicionário do cinema paranaense. Nele, uma raridade, Almir é mostrado por suas muitas faces profissionais na história cultural de Curitiba (um resumo do texto está na coluna de hoje). Como também nesta edição do site o leitor encontrará a mensagem final de Rodolpho ao pai e uma “memória” de José Maria Correa de Araujo sobre o amigo que se foi. Para mim, na despedida de Almir me vem uma frase Sêneca, que um dia ele me citou, em latim castiço, o que dá a dimensão de sua formação cultural: ‘Otium sine litteris mors est e vivi hominis sepultura” .

O clássico que relembro, um predileto de Almir, é para registrar que ele, desde que passou para a Eternidade, não está vivendo o simples lazer (Otium). Mas por lá está tomando seu “tempo” com a “litteris”. Pois não vive numa sepultura!

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